Autoridade, lei e justiça nos primeiros ensinamentos dos Papa Leão XIV

Por Alberto Guerra (Membro da UNIJUC e Procurador do Estado de Goiás)

Vivemos imersos na crença de que deve haver uma separação absoluta entre religião e vida pública. Por isso mesmo, é naturalmente esperado que as pessoas – mesmo alguns católicos – se espantem quando o Sumo Pontífice se propõe a falar sobre questões de direito e política. Mas a verdade é que os Papas têm muito a dizer sobre esse assunto.

Assim, vejamos brevemente alguns discursos do Papa Leão XIV, homem de formação não apenas teológica e filosófica mas também jurídica. Isto pode nos ajudar tanto a conhecer um pouco mais o recém-empossado Sucessor de Pedro quanto os ensinamentos católicos sobre lei, autoridade e justiça.

Iniciemos por um discurso feito ao Jubileu dos Governantes em junho de 2025. Nesse pronunciamento, o Papa recorda muito oportunamente às autoridades ali presentes que o fim último da ação política é “promover e tutelar, acima de qualquer interesse particular, o bem da comunidade, o bem comum” e, quando se age em vista desse fim, a política se torna, nos dizeres de Pio XI, “a mais alta forma de caridade”. E, dentre as condições necessárias ao bem comum, aponta duas em particular: a justa distribuição dos recursos materiais e a liberdade religiosa.

Aqui já temos um ponto de alta relevância para nós, juristas: o elemento teleológico como constituinte essencial da ação política e jurídica. A orientação ao bem comum não é apenas desejável ou uma questão puramente interna dos sujeitos que exercem o poder, mas, falando em termos filosóficos, é a própria causa final do Estado. Isto ficará mais claro adiante.

Prossegue Leão:

Então, para ter um ponto de referência unitário na ação política, em vez de excluir a priori nos processos decisórios a consideração do transcendente, será útil procurar nele o que une todos. Para esta finalidade, uma referência imprescindível é a lei natural, não escrita pelas mãos do homem, mas reconhecida como válida universalmente e em todos os tempos, que encontra na própria natureza a sua forma mais plausível e convincente. Já na Antiguidade, Cícero era um seu intérprete autorizado, escrevendo no De re publica: “A lei natural é a reta razão, em conformidade com a natureza, universal, constante e eterna que, com os seus ordenamentos, convida ao dever, e com as suas proibições dissuade do mal […]. Não é permitido fazer qualquer alteração a esta lei, nem subtrair qualquer parte dela, nem é possível aboli-la completamente; nem podemos, por meio do Senado ou do povo, libertar-nos dela, nem é necessário procurar o seu legislador ou intérprete. E não haverá uma lei em Roma, uma em Atenas, uma agora, outra depois; mas uma lei eterna e imutável governará todos os povos em todos os tempos.” (Cícero, De re publica, III, 22).

Nesse ponto eu não poderia deixar de registrar minha satisfação de ver Cícero sendo citado por um Papa a governantes do mundo inteiro. Uma curta fala que expõe a união entre o mundo antigo e o mundo cristão, a continuidade bimilenar do conhecimento da lei natural que foi preservado e aperfeiçoado pela Igreja Católica até chegar aos dias atuais e ser ensinado a pessoas que ocupam os mais elevados e variados cargos por todo o globo.

Muitos aspectos poderiam ser enfocados a partir daí. Entretanto, naquilo que mais é de interesse dos juristas, vemos que o Sumo Pontífice indica que a lei natural é “válida universalmente e em todos os tempos”, justamente porque “é a reta razão, em conformidade com a natureza”. O termo “natureza”, aqui, refere-se à natureza metafísica do próprio homem, não apenas à sua constituição biológica. E é essa natureza que pode ser objeto da razão a fim de se descobrir – e não de criar – o que é bom ou mal, justo ou injusto para o ser humano.

E, sendo a lei natural acessível à investigação racional, Leão XIV enfatiza que ela “une todos”. Esse é um aspecto muito pouco explorado do tema: a capacidade de servir como um ponto de partida para o diálogo entre diferentes culturas, tradições religiosas e visões de mundo e, em última análise, um pressuposto para a paz. Falando em termos jurídicos, a lei natural está acima, é anterior e emerge como fundamento de validade de qualquer ordenamento positivo.

Já em outra ocasião, falando ao Jubileu dos Operadores de Justiça, o Papa distingue a justiça como virtude moral e a justiça como estado de coisas, desempenhando “uma função superior na convivência humana, não podendo ser reduzida à mera aplicação da lei ou à ação dos juízes, nem limitar-se aos aspectos processuais”.

Citando Santo Agostinho em A Cidade de Deus, apresenta-nos a justiça como outro dos elementos constitutivos de uma autoridade legítima:

Queridos amigos, o Jubileu convida também a refletir sobre um aspecto da justiça que muitas vezes não é suficientemente focado: a realidade de tantos países e povos que têm “fome e sede de justiça”, porque as suas condições de vida são tão injustas e desumanas que se revelam inaceitáveis. Ao panorama internacional atual deveriam, portanto, aplicar-se estas sentenças perenemente válidas: “Sem a justiça não se pode administrar o Estado; é impossível que haja direito num Estado onde não há verdadeira justiça. O ato que se realiza segundo o direito realiza-se certamente segundo a justiça, e é impossível que se realize segundo o direito o ato que se realiza contra a justiça […] O Estado, no qual não há justiça, não é um Estado. A justiça é, com efeito, a virtude que distribui a cada um o que é seu. Portanto, não é justiça do homem aquela que retira o próprio homem ao Deus verdadeiro”.

Isto nos recorda a passagem em que Santo Agostinho narra um diálogo entre Alexandre Magno e um pirata capturado. O imperador indaga se ele não se ressentia de assolar os mares e o bandido responde que o que o monarca fazia era a mesma coisa, mas em maior escala.

Como um bom agostiniano, Leão XIV sabe que a distinção entre um reino e uma quadrilha de piratas só pode ser a justiça. Em outras palavras, só é digna de ser chamada governo aquela entidade política que tem seus atos pautados na lei natural e que se orienta ao bem comum. Recorrendo mais uma vez à terminologia filosófica, digamos que estas são a causa formal e a causa final da autoridade e da lei positiva.

E quais seriam os efeitos se, em um dado momento e lugar, as coisas fossem ordenadas dessa maneira? O Pontífice oferece um vislumbre falando ao encontro de legisladores católicos:

A autêntica prosperidade humana deriva daquilo que a Igreja define como desenvolvimento humano integral, ou seja, o pleno crescimento da pessoa em todas as dimensões: física, social, cultural, moral e espiritual. Esta visão da pessoa humana está enraizada na lei natural, a ordem moral que Deus inscreveu no coração humano, cujas verdades mais profundas são iluminadas pelo Evangelho de Cristo. A tal respeito, a autêntica prosperidade humana manifesta-se quando as pessoas vivem virtuosamente, quando vivem em comunidades saudáveis, beneficiando não só do que têm, do que possuem, mas também do que são como filhos de Deus. Assegura a liberdade de procurar a verdade, de adorar a Deus e de criar uma família em paz. Inclui também uma harmonia com a criação e um sentido de solidariedade através das classes sociais e das nações. Com efeito, o Senhor veio para que “tenhamos vida e a tenhamos em abundância” (cf. Jo 10, 10).

Em vista desse objetivo, conclama-os:

Na vossa vocação de legisladores e funcionários públicos católicos, sois chamados a ser construtores de pontes entre a cidade de Deus e a cidade do homem. Esta manhã, gostaria de vos exortar a continuar a trabalhar por um mundo em que o poder seja controlado pela consciência e em que a lei esteja a serviço da dignidade humana.

Por fim, consciente da grandeza e da dificuldade da missão, o Papa oferece um modelo de virtude para guiar as consciências dos homens públicos:

Por ocasião do Jubileu do Ano 2000, São João Paulo II indicou aos políticos São Tomás More, como testemunha a ter em conta e intercessor sob cuja proteção se comprometer. Com efeito, Sir Thomas More foi um homem fiel às suas responsabilidades cívicas, um perfeito servidor do Estado precisamente em virtude da sua fé, que o levou a interpretar a política não como profissão, mas como missão para o crescimento da verdade e do bem. Ele “colocou a sua atividade pública ao serviço da pessoa, especialmente se frágil ou pobre; tratou as controvérsias sociais com um requintado sentido de justiça; salvaguardou a família, defendendo-a com um esforço árduo; promoveu a educação integral da juventude“»” (Carta apostólica sob forma de Motu proprio E Sancti Thomae Mori, 31 de outubro de 2000, 4). A coragem com que não hesitou em sacrificar a própria vida para não trair a verdade faz dele ainda hoje, para nós, um mártir da liberdade e do primado da consciência. Possa o seu exemplo ser também fonte de inspiração e organização para cada um de vós.”

Um jurista que conhece bem os pressupostos metafísicos da autoridade e da lei, um agostiniano que ensina sobre uma justiça integral – deixando claro que não há ordem sem virtude -, um homem consciente das dificuldades inerentes à atividade política e jurídica. Que este brevíssimo apanhado das manifestações de Leão XIV possa nos ajudar a conhecê-lo e, inclusive em nossa vida profissional, nos aproximar mais dele.

Este texto terminaria aqui, mas, antes de ser publicado, veio à luz a recentíssima Exortação Apostólica Dilexi te, que nos mostrou mais um traço da personalidade de Leão XIV. Embora não se trate de um documento muito voltado à doutrina social – é muito mais uma recordação de que o cuidado com os pobres é da essência da caridade cristã e que isto sempre foi prioridade ao longo dos dois mil anos de existência da Igreja -, com seu exemplo pessoal, o Pontífice deu-nos uma lição sobre a prudência de um legítimo governante.

É notável a delicadeza de Leão XIV ao nos revelar que essa exortação era um projeto do Papa Francisco que ele assumiu como “herança”, um complemento à belíssima Encíclica Dilexit nos. Isto deixa implícito que uma autoridade verdadeiramente inclinada à preservação e desenvolvimento da instituição que governa não é dada a rupturas ou revoluções, mas age com respeito ao que recebeu e ao que já fora construído.

No espírito desse documento magisterial e naquilo que nos toca em particular, observemos que o Papa ensina que a pobreza não se restringe à falta de recursos materiais, mas é um conceito mais amplo que abrange todas as condições necessárias ao pleno desenvolvimento humano, de modo que também são pobres aqueles que não têm direitos, aqueles a quem é negado o justo.

Concluamos, pois, ecoando a exortação e convidando à reflexão: quem são aqueles que, em nossas realidades concretas, vemos que até podem ter dinheiro mas lhes é negado o direito? E o que podemos fazer por eles?

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REFERÊNCIAS:

DISCURSO DO PAPA LEÃO XIV AOS PARTICIPANTES NO JUBILEU DOS GOVERNANTES, 21 de junho de 2025, Disponível em <https://www.vatican.va/content/leo-xiv/pt/speeches/2025/june/documents/20250621-giubileo-governanti.html>.

DISCURSO DO PAPA LEÃO XIV AOS MEMBROS DA INTERNATIONAL CATHOLIC LEGISLATORS NETWORK, 23 de agosto de 2025, Disponível em <https://www.vatican.va/content/leo-xiv/pt/speeches/2025/august/documents/20250823-legislatori-cattolici.html>.

CATEQUESE DO PAPA LEÃO XIV AO JUBILEU DOS OPERADORES DA JUSTIÇA, 20 de setembro de 2025, Disponível em <https://www.vatican.va/content/leo-xiv/pt/speeches/2025/september/documents/20250920-giubileo-operatori-giustizia.html>.

EXORTAÇÃO APOSTÓLICA DILEXI TE DO SANTO PADRE LEÃO XIV SOBRE O AMOR PARA COM OS POBRES, 4 de outubro de 2025, Disponível em <https://www.vatican.va/content/leo-xiv/pt/apost_exhortations/documents/20251004-dilexi-te.html>