Por Murilo Miranda. Advogado, professor e membro da UNIJUC.
Há décadas há uma ânsia para que homicídio intrauterino (aborto) seja considerado um direito no Brasil. Organizações nacionais e internacionais pressionam o governo brasileiro e legisladores para que o aborto seja considerado um direito inequívoco da mulher: bastaria a decisão dela, sem qualquer justificativa, para que a vida fosse ceifada de seu ventre.
Os defensores do aborto há muito não se sentem satisfeitos com as controversas situações de extinção de punibilidade previstas no Código Penal, como o caso de estupro e risco de morte da mãe. Querem mais, querem tornar a interrupção imotivada da vida humana intrauterina em um “direito” humano e fundamental.
Prova disso são os vários projetos de lei nesse sentido que nunca tiveram votação suficiente por causa da pressão social que há sobre o tema. Desde a Grécia a lei foi concebida como a manifestação vontade popular, ou seja, a vontade do povo se transmuta em lei e direciona a sociedade. Esse mecanismo, mutatis mutandis, inspirou as democracias modernas a implantarem o voto para que o povo manifestasse sua vontade mediante representantes eleitos numa democracia indireta. Obviamente que um dos critérios para que os legisladores eleitos assim se mantenham é exatamente sua coerência e fidelidade à vontade popular – ou, pelo menos, à vontade de seus eleitores, sob pena de não serem mais eleitos.
Segundo pesquisa recente do Data Folha, “apenas 6% dos brasileiros defendem direito da mulher ao aborto em qualquer situação”. Assim, a aprovação do aborto sem qualquer justificativa mostrou-se inviável pela via legislativa no Brasil, ante a inexorável oposição da sociedade quanto à questão.
Cientes de tal fato, as organizações nacionais e internacionais favoráveis ao aborto tem se articulado para a sua implementação por outras vias que não a via legal, abandonado o caminho democrático. Um desses atalhos é a via judicial, sobretudo, perante o Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, se encontra em trâmite a ação de descumprimento de preceito fundamental – ADPF n. 442, movida pelo Partido Socialista do Brasil. A ADPF n. 442 pretende a liberação do aborto sem qualquer justificativa da mulher e atualmente possui a relatoria do Min. Flávio Dino, porém, já teve o voto de provimento (procedência, autorização) da sua relatora anterior, a Min. Rosa Weber. Essa ação pode ser submetida a julgamento (colocada em pauta) a qualquer momento.
Para se esquivar da pressão social, a via judicial tem sido um caminho certo da política abortista no Brasil. Exatamente como aconteceu nos EUA, em 1973, no caso Roe x Wade, em que a Suprema Corte norte-americana aprovou o aborto criando precedente judicial aplicável a todo o país. A judicialização da questão do aborto no Brasil e em muitos países do mundo ocorre porque a tentativa da aprovação de lei nesse tema fracassa constantemente: como dito, a população geralmente é majoritariamente contra o aborto, e os legisladores estão atentos a esse fenômeno social e não querem forçar uma pauta que a sociedade civil rejeita, com receio de prejuízo eleitoral.
Uma segunda frente para a implementação do aborto no Brasil, ignorando a via democrática (mediante projeto de lei), é exercida pelo atual Poder Executivo Federal. Ainda que fora de sua competência institucional, o governo federal tem dado investidas nesse tema. Por exemplo, em março de 2024, houve nota técnica publicada pelo Ministério da Saúde, em que estabelecia não haver limite temporal para a interrupção da gravidez nos casos previstos no Código Penal – estupro, risco de morte para a gestante e em caso de anencefalia (essa última hipótese advinda do julgamento do STF na ADPF 54). Na prática, a nota permitia que o aborto nessas situações pudesse ser feito dias antes do parto, ou seja, com a criança prestes a nascer. A referida nota técnica publicada pelo Ministério da Saúde foi cancelada após severas críticas de vários setores da sociedade.
Novamente, o Governo Federal tenta mais uma vez a implementação do aborto de modo escuso e antidemocrático. A tentativa agora é via Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA). O CONANDA é um órgão colegiado permanente, de caráter deliberativo e composição paritária, previsto no artigo 88 da Lei Federal n. 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Atualmente o CONANDA integra a estrutura do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
O CONANDA possui gestão compartilhada entre governo e sociedade civil que possuem o mesmo número de membros com o mesmo poder de voto e conjuntamente definem, no âmbito do Conselho, as diretrizes para a Política Nacional de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. As principais atribuições legais do CONANDA é “fiscalizar as ações de promoção dos direitos da infância e adolescência executadas por organismos governamentais e não-governamentais” e “definir as diretrizes para a criação e o funcionamento dos Conselhos Estaduais, Distrital e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente e dos Conselhos Tutelares”.
Está previsto para o dia 23 de dezembro de 2024, na antevéspera do Natal, a votação de uma Resolução no âmbito do CONANDA que, se aprovada, obrigará todos os Conselhos Tutelares do Brasil a encaminhar imediatamente para um programa de aborto qualquer gestação de menores de 14 anos, independentemente do conhecimento ou do consentimento dos pais, em qualquer idade da gestação, até os nove meses da gravidez. O CONANDA usa como subterfúgio da medida a alegação de que nos termos do Código Penal a relação sexual com menores de 14 anos é estupro de vulnerável, nos termos do art. 9, §§ 1º e 2º da Resolução:
Art. 9, § 1º: Toda gravidez de criança ou adolescente de até 14 anos deve ser compreendida como decorrente de uma violência sexual, sendo desnecessária a análise sobre o consentimento na relação sexual.
Art. 9, § 2: Identificada a gravidez, a criança ou adolescente deve ter garantido o seu direito de acesso à informação para a tomada de decisão informada sobre questões relativas à interrupção da gravidez.
Note-se que há o dever de “acesso à informação para a tomada de decisão informada sobre questões relativas à interrupção da gravidez”, portanto, o texto da Resolução é expresso no sentido de que a menor não terá qualquer informação sobre a possibilidade de manutenção da gravidez, será apenas “informada sobre questões relativas à interrupção da gravidez”. E tudo isso sem a participação dos pais, apenas com a presença dos Conselhos Tutelares. É o que dispõe o art. 6, § 1º da Resolução:
Art. 6, § 1º: É vedada a imposição de qualquer exigência, como a obrigatoriedade da presença de um responsável para acompanhamento no serviço de saúde, que possa afastar ou impedir o exercício pleno da criança ou adolescente de seu direito fundamental.
A Resolução é clara e inequívoca de que o aborto será imposto à menor como única via, ainda que não se trate de uma gravidez com risco de morte evidente. Tal fato também se evidencia no art. 9º caput e § 2º da Resolução, vez que a menor será encaminhada “direta e imediatamente ao serviço de saúde para realizar a interrupção legal da gravidez”:
Art. 9: O primeiro órgão do sistema de garantia de direitos que receber o relato encaminhará a criança ou adolescente direta e imediatamente ao serviço de saúde para realizar a interrupção legal da gravidez.
Artigo 9 §2: A criança ou a adolescente deverão ser informadas sobre o direito que ela tem de abortar, quando todas informações sobre a continuidade da gestação deverão ter por perspectiva o fato de que gravidezes de crianças e adolescentes são gestações de alto risco.
Infere-se que a sistemática de morte proposta pela Resolução do CONANDA é a seguinte: a equipe médica que identificar a menor grávida deverá acionar imediatamente o Conselho Tutelar que encaminhará a menor “direta e imediatamente ao serviço de saúde para realizar a interrupção legal da gravidez”, sem qualquer consentimento ou autorização dos pais, isso porque “é dever da família abster se de qualquer ato que constranja a criança ou adolescente em decorrência da decisão interromper a gestação” (artigo 14 da Resolução). Nesse sentido, reforça o art. 15 da Resolução:
Art. 15: A criança ou adolescente tem o direito de expressar livremente suas opiniões, sendo vedada, nestes casos, a prevalência da opinião dos responsáveis legais.
Note-se que o intuito da Resolução é que aparato estatal seja amplamente utilizado para que a morte da criança não nascida seja viabilizada de modo ágil e com o mínimo de burocracias, isso em um dos países mais burocráticos do mundo e lento no atendimento de demandas sociais verdadeiramente urgentes, inclusive a saúde pública.
Outro aspecto da Resolução do CONANDA é que o aborto deverá ocorrer “independentemente do tempo gestacional ou peso fetal” (art. 16), afastando inclusive a recomendação técnica do Ministério da Saúde de que o aborto tão-somente pode ocorrer dentro das previsões de excludente de punibilidade previstas no Código Penal e até a 22ª semana de gestação, posto que após tal período a vida da criança se torna viável sob o aspecto médico, ou seja, ainda que a criança nasça prematuramente a chance de sobrevivência é consideravelmente alta:
Art. 16: A interrupção da gravidez será realizada independentemente do tempo gestacional ou peso fetal. O limite de tempo gestacional para realização do procedimento não tem previsão legal, não podendo ser aplicado como um critério pelos serviços para a realização do aborto.
Acima a Resolução alega que “o limite de tempo gestacional para realização do procedimento não tem previsão legal, não podendo ser aplicado como um critério pelos serviços para a realização do aborto”. Tal afirmação indica um falso zelo à legislação vigente e não passa de verborragia usada para disfarçar a contradição e ilegalidade do texto, posto que a Resolução ofende vários dispositivos legais, inclusive a Constituição da República, como será disposto adiante.
Nesses termos, obviamente que se aprovada, a Resolução deverá alavancar no Brasil a promoção da agenda do aborto durante todos os nove meses da gravidez, aplicando-se tal regra a todos os casos e não somente às menores de 14 anos. Quando se trata de implementação da cultura da morte, a interpretação das leis sempre se dá de modo extensivo ao máximo, aplicando-se a todos os casos e não somente aos originariamente previstos.
É fato que a ilegalidade e inconstitucionalidade da Resolução CONANDA são gritantes. Primeiramente, afastar os pais e responsáveis pela menor da decisão sobre o aborto – que repercutirá para o resto da sua vida, ofende o art. 227 da Constituição da República que coloca a família como primeira responsável pela criança e o adolescente, e, tão somente na ausência ou impossibilidade do núcleo familiar de tutelar a criança ou o adolescente é que a sociedade e o Estado o farão:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Noutro aspecto, o Código Civil determina que “são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos” (art. 3º). Ao mesmo tempo o Código Civil determina que “os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores” (art. 1.630). Portanto, a Resolução CONANDA é ilegal por impedir o exercício do poder familiar dos pais e responsáveis sobre a criança menor e absolutamente incapaz de responder por seus atos, em total afronta ao Código Civil vigente. Pelo vetusto e ainda aplicável princípio da hierarquia das normas, é óbvio que uma mera Resolução não pode se sobrepor a Constituição e a uma lei federal. Mas, no que se refere ao aborto, as obviedades são deixadas de lado e a vã narrativa tente a se sobrepor a razão, o direito, a verdade – tudo é válido para fundamentar a morte de inocentes.
Ademais, como visto anteriormente o CONANDA tem sua base legal de existência no Estatuto da Criança e Adolescente – ECA (Lei Federal n. 8.069/1990), que declara expressamente em seu artigo 7º o direito fundamental à vida e ao nascimento da criança:
Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
É absolutamente contraditório um órgão que, nos termos da lei, deveria proteger a vida e o direito ao nascimento das crianças (art. 7º do ECA) ser atualmente o protagonista na pauta abortista, com a ânsia assassina de ceifar crianças não nascidas no ventre de suas mães de forma ilegal e inconstitucional.
Entretanto, esse é exatamente o modus operandi das organizações abortistas, seja no âmbito nacional ou internacional. Para a implementação do aborto, torna-se o direito antijurídico, ofende-se direitos fundamentais, relativiza-se normas constitucionais, revogam-se princípios jurídicos, inobserva-se o sistema democrático e a tripartição dos poderes. Enfim, o “direito” ao aborto é o fim dos direitos.
Que essa nefasta, ilegal e inconstitucional Resolução não vingue para que nesse Natal não haja novamente um massacre dos Santos Inocentes.