O dever-direito da Igreja de ensinar.

Autor: Emanuel de Oliveira Costa Jr.

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Introdução.

Sempre que vai se falar sobre educação no meio católico e sob a égide de preceitos católicos, é preciso entender, antes de tudo, como a própria Igreja entende a educação dentro de seus preceitos. Assim conseguimos entender exatamente o que e porque é feito dessa ou daquela forma, sem conclusões precipitadas ou simples falta de coesão das ideias com o fundamento do que se fala.

Pois bem, a Igreja entende a educação como algo de suma importância, como não poderia deixar de ser, contudo essa importância é tamanha que um dos livros do Código de Direito Canônico é dedicado ao “Múnus de Ensinar” e esse múnus, conforme a doutrina indica, está muito além da mera lei pela lei.

O múnus de ensinar, para a Igreja se encontra em mandato divino na passagem do Evangelho de São Marcos, 16, 15 que diz “Ide ao mundo inteiro, pregai o Evangelho a toda criatura”. Trata-se, portanto de uma lei de origem divina, ou seja, que sequer pode ser mudada por qualquer mandatário da Igreja, bispo ou Papa, e que a Igreja cumpre apenas regulamentando como fazer a medida que a história se consome.

Que fique claro a profundidade do que é algo que advém do direito divino para a Igreja. Uma vez que ela é fundada por Cristo, os seus fundamentos são divinos, por isso tais fundamentos ela mesma não pode modificar por óbvio motivo de incompetência absoluta para tal. Questões administrativas, de regulação ou disciplina interna que chamamos de mero direito eclesiástico por ser um direito da Igreja “instituição desde mundo e não divina”[1], esses podem ser mexidos, modificados, extintos ou criados conforme a necessidade do legislador. O direito divino e o direito natural não podem ser tocados pela Igreja, nem por quem quer que seja, uma vez que existe absoluta incompetência para tanto. Portanto, a Igreja tem a educação como um mandamento divino, de direito divino por conseguinte, logo, impossível de a Igreja fazer algo que não seja apenas estabelecer regras para melhor cumprir com o preceito.

Assim é compreendida a educação e o múnus de ensinar da Igreja.

 

1) Educação: um direito fundamental.

 

Sendo a educação um direito fundamental que assim consta na Declaração Universal dos direitos Humanos e na constituição da maioria dos países, a Igreja assim já o entende desde os primórdios. Entretanto, a contrário senso do que vem se desenvolvendo a educação em muitos países, que concentram no estado um dever que parece não ser dele, para a Igreja quem tem o dever e o direito de escolher o modelo de ensino são sempre os pais ou aqueles que fazem suas vezes. O Estado não pode obrigar a isso sob pena de atingir um direito natural, humano e fundamental. É isso que diz o cânon 743 §1 do Código de Direito Canônico:

Cân. 793 – § 1. Os pais e os que fazem suas vezes têm a obrigação e o direito de educar sua prole; os pais católicos têm também o dever e o direito de escolher os meios e instituições com que possam, de acordo com as circunstâncias locais, prover do modo mais adequado à educação católica dos filhos.

Tudo isso advém de um entendimento de que a educação é um direito mais que fundamental, pois não só um direito que o Estado tem o dever de conceder porque ele mesmo assim designou, mas por ser um direito natural, portanto que o Estado apenas tem o dever de reconhecer e dar a maior possibilidade possível para a sua concretização. Nisso há uma grande diferença. Se o Estado entende que tem o dever de conceder educação para os seus, ele, o Estado, está se colocando na condição de detentor de um dever, mas não há nada acima dele, o Estado, que o obrigue a isso, apenas sua livre vontade. Sendo reconhecido como um direito natural, o Estado não tem que conceder o direito, mas simplesmente reconhecer que esse direito já existe, é natural e precisa ter do Estado o maior empenho possível para ser exercido, independentemente da sua vontade.

 

2) O direito natural.

 

Infelizmente, o que vemos por aí é um total desapego ao estudo do direito natural que sequer faz parte do currículo da maioria das faculdades de direito. Com essa realidade o que temos são bacharéis em direito com mínimo ou nenhum conhecimento sobre o assunto e que se debatem em argumentos pífios que poderiam ser solucionados de forma muito simples, encerrando vários e diversos debates que sequer deveriam acontecer. A realidade é que temos juristas que sequer sabem o que vem a ser direito natural.

O cânon 793 do CIC[2] ainda revela algo muito interessante e que é pauta para os dias atuais: quem tem o dever e o direito de escolher o modelo de ensino são sempre os pais ou aqueles que fazem suas vezes. O Estado não pode obrigar a isso sob pena de atingir um direito natural, humano e fundamental. Com o texto afirmando que “os pais católicos têm também o dever e o direito de escolher os meios e instituições com que possam, de acordo com as circunstâncias locais, prover do modo mais adequado à educação católica dos filhos”, fica claro que o chamado homeshcooling é uma realidade na vida dos pais católicos caso essa seja a sua escolha de meio de educação dos filhos.

Não se trata de defender ou deixar de defender esse ou aquele ponto desse tipo de educação, muito menos de defender se é melhor ou pior. A questão aqui é justamente que o Estado não tem que restringir o direito e essa avaliação fica a cargo dos pais. Obviamente que o Estado teria todas as possibilidades e condições de verificar se realmente está sendo feito esse ensino nesse formato, contudo com muito bom sendo, sem ingerências inoportunas e discriminação nessa verificação.

Quando se menciona sobre escolher a melhor forma de educação e entre elas poder escolher um chamado homescholling ou que se crie uma escola com determinados parâmetros de ensino, se está falando de uma liberdade que Bases Nacionais Comuns Curriculares, como a do Brasil e de diversos países pelo mundo, costumam engessar.

Não é tão prodigioso assim chegar á conclusão que uma Base Nacional Comum Curricular como a nossa brasileira, mesmo que não fosse ideologizada, o que não é verdade, ainda assim teria problemas em tornar comum o ensino para pessoas que moram no meio do Amazonas e que moram no centro das grandes metrópoles. Não difícil perceber que o público estudantil é muito diferente e que meios, métodos e esquemas devem ser diferenciados e adaptados tanto à condição financeira como ao ritmo de vida e a cultura.

 

3) A Exortação Apostólica Familiaris Consortio.

 

Voltando às raízes do entendimento sobre a educação dos filhos, a Igreja entende que a união entre homem e mulher ao gerar a prole, assume para si, os esposos, “a obrigação de ajudá-la a viver uma vida plenamente humana” (Exortação Apostólica Familiaris Consortio, 36) sendo que uma vida plenamente humana inclui a instrução e educação como um todo.

36.O dever de educar mergulha as raízes na vocação primordial dos cônjuges à participação na obra criadora de Deus: gerando no amor e por amor uma nova pessoa, que traz em si a vocação ao crescimento e ao desenvolvimento, os pais assumem por isso mesmo o dever de a ajudar eficazmente a viver uma vida plenamente humana.[3]

Mas o mesmo número 36 continua:

O direito-dever educativo dos pais qualifica-se como essencial, ligado como está à transmissão da vida humana; como original e primário, em relação ao dever de educar dos outros, pela unicidade da relação de amor que subsiste entre pais e filhos; como insubstituível e inalienável, e portanto, não delegável totalmente a outros ou por outros usurpável.

Portanto, os pais são aqueles que tem a obrigação primária da educação sendo o que sobra uma obrigação subsidiária. Portanto a escola, catequese, governos… todos tem obrigação educacional subsidiárias. A obrigação subsidiária se dá devido ao não cumprimento ou ao cumprimento incompleto, por diversos motivos e não só por desídia por parte dos pais. Nesse caso o Estado e a sociedade como um todo tem o dever subsidiário de suprir essa falha ou falta.

O Concílio Vaticano II ainda menciona uma dupla motivação: primeiro que a Igreja deve ser reconhecida como uma sociedade humana, capaz de transmitir educação; segundo, acima de tudo, porque tem a missão divina de anunciar a todos os homens o caminho da salvação e comunicar a vida de Cristo aos crentes, ajudando-os com solicitude incessante a alcançar a plenitude. Assim a Igreja se reconhece com relação a educação, ou seja, algo que vai muito além do mero conhecimento científico e intelectual, sendo esses apenas duas das nuances dessa educação como continua o mesmo documento no terceiro parágrafo do número 36:

Para além destas características, não se pode esquecer que o elemento mais radical, que qualifica o dever de educar dos pais é o amor paterno e materno, o qual encontra na obra educativa o seu cumprimento ao tornar pleno e perfeito o serviço à vida: o amor dos pais de fonte torna-se alma e, portanto, norma, que inspira e guia toda a ação educativa concreta, enriquecendo-a com aqueles valores de docilidade, constância, bondade, serviço, desinteresse, espírito de sacrifício, que são o fruto mais precioso do amor.

O pequeno parágrafo acima sintetiza muito ou quase tudo do como deve ser a educação para a Igreja.

Em tempos um pouco mais remotos, já no longínquo ano de 1929, o Papa Pio XI já publicava uma encíclica de nome Divini Illus Magistri que, entre outras coisas, mencionava o seguinte:

Sobre este ponto é de tal modo unânime o sentir comum do género humano que estariam em aberta contradição com ele, quantos ousassem sustentar que a prole pertence primeiro ao Estado do que à família, e que o Estado tenha sobre a educação direito absoluto. Insubsistente é pois a razão que estes aduzem, dizendo que o homem nasce cidadão e por isso pertence primeiramente ao Estado, não refletindo que o homem, antes de ser cidadão, deve primeiro existir, e a existência não a recebe do Estado mas dos pais (…)[4]

Por fim, apenas para não alongar sobre essa exortação apostólica que tem material para tomos e tomos de análise, apenas deixamos uma última citação:

37. Embora no meio das dificuldades da obra educativa, hoje muitas vezes agravada, os pais devem, com confiança e coragem, formar os filhos para os valores essenciais da vida humana.

Tal citação deixa claro que a Igreja buscar na educação que pretende que os fiéis exerçam para com seus filhos, a busca pelos “valores essenciais da vida humana”. Cabe aqui a reflexão até que ponto uma instituição que não seja a própria família pode chegar a esse objetivo de formar pessoas com “valores essenciais da vida humana”.

 

4) Declaração Gravissimum Educationis.

 

Ainda em um documento do Concílio Vaticano II, temos que a educação é um direito natural e universal que todo homem é titular (Declaração Gravissimum Educationis, 1), portanto não pode ser aceita a interferência de outras pessoas ou entidades que ilegitimamente podem agir com ingerência.

1.Todos os homens, de qualquer estirpe, condição e idade, visto gozarem da dignidade de pessoa, têm direito inalienável a uma educação correspondente ao próprio fim, acomodada à própria índole, sexo, cultura e tradições pátrias, e, ao mesmo tempo, aberta ao consórcio fraterno com os outros povos para favorecer a verdadeira unidade e paz na terra.[5]

A Declaração Gravissimum Educationis ainda:

2. Todos os cristãos que, uma vez feitos nova criatura mediante a regeneração pela água e pelo Espírito Santo, se chamam e são de fato filhos de Deus, têm direito à educação cristã.

Pode causar estranheza o mencionar de apenas os cristãos terem esse direito, contudo o que precisa ser visto aqui é que a Igreja não legisla para não cristãos, mas apenas para os seus e por isso a menção de educação cristã para cristãos.

Não poderia ser diferente uma vez que a liberdade religiosa, outro direito natural, deve garantir que essa educação seja exercida. Lembre-se que a liberdade religiosa, sendo de direito natural, apenas deve ser reconhecida e amparada da melhor forma pelo Estado, nunca concedida, pois o Estado não tem esse poder.

Pensando em uma boa educação cristão, quem poderia melhor conceder essa educação que não a Igreja e a família? Aqui caímos novamente em pseudo-dilemas que na verdade são apenas temas que se tornaram verdadeiros dogmas culturais e que não “podem” ser debatidos, contudo não há argumentos contrários suficientes, ou seja, se tornaram assunto verdadeiramente proibidos.

 

Conclusão.

 

O direito-dever da Igreja na educação é considerado por ela própria de direito divino, portanto irrevogável por sua parte. Entende a Igreja que tanto ela quanto a família precedem o Estado na educação, não excluindo esse último, contudo com atividade subsidiária de grande importância, mas não primacial, muito menos quando se torna a educação estatal uma educação voltada para ideologias políticas e anti-naturais, coisa que facilmente acontece ao longo da história.

Enfatize-se que não se trata apenas de uma educação humana como a que possa ser dada por qualquer pai, mas de uma verdadeira educação cristã englobando tantos os aspectos humanos quanto também os aspectos religiosos.

Um grande aspecto a ser visto aqui é que só é possível exercer esse direito-dever no caso de haver verdadeira liberdade religiosa, direito natural, para que as pessoas possam educar seus filhos dentro dos preceitos cristãos católicos que é do que se trata esse texto. Caso contrário não poderão, de forma alguma chegar ao objetivo que a Igreja concretiza no texto do cânon 793 do CIC ou apenas poderão aproximar-se desse exercício e não exercê-lo em sua plenitude. Nesse aspecto cabe a promoção do poder público para garantir plenamente a liberdade necessária não apenas um exercício marginal do direito-dever.

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[1] A Igreja é uma instituição que possui tanto a natureza humana, que chamamos desde mundo, como é divina. O que pretendemos mencionar aqui e colocamos entre aspas justamente por isso, é que estamos nessa oração lidando apenas com a natureza humana, ou seja, aquela natureza que precisa lidar com outras pessoas e instituições que não são da Igreja ou relativas a religiões quaisquer que sejam, mas simplesmente estatais ou privadas.

[2] Codex Iuris Canonici, em português, Código de Direito Canônico. Sua sigla aqui colocada está em latim como no original.

[3] Exortação Apostólica Familiaris Consortio, 36a. Acessado no dia 22/07/2020 no site: http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_exhortations/documents/hf_jp-ii_exh_19811122_familiaris-consortio.html

[4] [4] Encíclica Divini illus Magistri. Acessado em 12/08/2020 no site: http://www.vatican.va/content/pius-xi/pt/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_31121929_divini-illius-magistri.html

[5] Declaração Gravissimum Educationis, 1. Acessado em 12/08/2020 no site: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_gravissimum-educationis_po.html